'Vem, sê a minha luz'

Um dia cheguei a casa e estava um grupo de voluntários à conversa na sala de jantar. Cansada do dia de trabalho, sentei-me e comecei a ouvir a conversa. 'Já não via isto há anos'. Isto o quê? Continuava atenta. 'No meu país já quase não vemos crianças assim'. Pensava, na minha ignorância, que estavam a falar das anomalias físicas que víamos diariamente, dignas de um filme de terror. Mas não.
Chamava-se Asha. Não sei a idade, um pouco mais baixa do que eu, era das poucas que andava, tinha cabelos pretos escorridos, dentes à ratinho e uns olhos lindos, típicos de quem carrega mais um cromossoma. Iluminava o meu dia. No meio do caos que era trabalhar ali, que era cuidar daquelas miúdas, a Asha era quem cuidava de mim! Todos os dias tentava ajudar-me nas tarefas de Shanti Dan, ajudava-me a levar as amigas para o quarto, para a casa de banho, ajudava a carregar os baldes de roupa...e, apesar de não falar, acho que se encarregava de tornar o meu dia melhor...de me encorajar a trabalhar com um sorriso e a direcionar tudo aquilo para Quem importa. Dava sentido a tudo. Queria contar-vos tudo o que sei sobre ela, mas sei pouco.
O que sei? Que, ao contrário da maioria destes casos, lhe foi dada a oportunidade de viver. Coisa rara, hoje em dia. Parece que andam aí a dizer que não vale a pena trazer estes tesouros ao mundo, que não vão servir, que estamos a poupar-lhes ou a prevenir um sofrimento, a eles e aos pais, que vão ser um fardo. O quê? Estão a dizer-me que preferem privar estas crianças de se mostrarem ao mundo, de nos contagiarem com a sua alegria, atenção, carinho, que lhes é tão característico e de quem podemos aprender tanto?
Estamos mesmo a assumir a possibilidade de eliminar uma vida, sermos apoiadas por uma maioria, ajudadas pelo Estado, pelo simples facto de ter haver uma criança dita, por alguns, 'menos normal', dentro da barriga de uma mãe? Claro que não vamos descurar os problemas associados à trissomia 21: as constantes idas ao médico, o coração, os sentidos, a vida futura, a possibilidade de Alzheimer...tanta coisa. Mas a solução é nem entrarem neste mundo? Acabar com a sua existência? Ou deveria ser um maior apoio às famílias? Melhores cuidados de saúde? Escolas preparadas e orientadas por profissionais da área? Parece-me que estamos a assumir que somos mais do que estas pessoas... O que tenho 'a mais' comparativamente às pessoas com síndrome de Down? Gostava que me dessem uma resposta que justificasse a morte dos mesmos antes de poderem chegar a este mundo e contagiarem-nos com tudo o que têm para dar.
Agora os dados: na Islândia, quase 100% dos diagnósticos pré-natal que têm um resultado positivo para o síndrome de Down, acabam em aborto; na Dinamarca, 98%...no Reino Unido, a percentagem chega a 90%...em França são 77% e nos Estados Unidos 67%.
Hoje, 21 de março, comemora-se o dia internacional do síndrome de Down. Estive o dia todo (20 de março, dia em que estou a escrever este post) a debater-me interiormente com várias questões relacionadas com a vida... Antes de me ir deitar, lembrei-me da Asha e comecei a escrever um post em sua honra. Para minha surpresa, hoje é o dia em que se comemoram estas vidas.
Obrigada, Asha, por estares de novo a aparecer no meu caminho. Obrigada a todas as mães e a todos os pais que escolhem a Vida, avançam com a gravidez mesmo quando sabem da possibilidade de o filho nascer com trissomia 21. Por irem contra uma corrente que insiste que desvalorizar estas vidas que mudam por completo as nossas. Obrigada pelas Carminhos, Gabriela, Leonor e Asha presentes na minha vida...que mostram diariamente a alegria que é a vida.